Dizia um dos maiores poetas hebreus modernos, Haim Nákman Biálik, que ler uma obra poética em outra língua é como beijar a noiva através do véu. A única maneira de atenuar, antes do que anular, os efeitos mais distanciadores de semelhante interposição é a que fornece um texto transcriativo capaz de repor no idioma de chegada o vigor literário e o imaginário de origem.
Sob este aspecto a tragédia grega não tem sido muito feliz, não só em nosso meio. Ainda que se conheçam em muitos idiomas transposições das mais significativas, em geral a tendência é apresentá-la em prosa, mas, fazendo-o, trai-se a essência do gênio e do engenho desta expressão superior da criação dramática e poética da Hélade. Mesmo no teatro, cujos recursos, sem dúvida, vão além da relação escrito-leitor, o valioso legado de vivência humana e enformação artística comunicado em termos prosaicos perde enormemente em altitude na transmissão de seu impressionante repertório de mitos, mistérios, crítica e meditação acerca da condição humana.
Na perspectiva desta carência, tão acusada em nosso âmbito, e do desejo de contribuir para superá-la, Trajano Vieira tem-se dedicado a um projeto de resgate do qual resultou o presente livro. Reunindo duas traduções suas, Ájax de Sófocles e Prometeu Prisioneiro de Ésquilo, e a consagrada recriação da Antígone de Sófocles, por Guilherme de Almeida, o organizador do volume pretendeu não apenas proporcionar mais uma versão destas peças, como propor novos parâmetros para a reescritura vernácula da tragediografia helênica e para a recondução de seus textos em português às formas e à linguagem que só elas podem falar do poder expressivo e comunicativo da tragédia grega.
Merece ainda destaque, neste contexto, o aparelhamento crítico e erudito que acompanha a edição, evidenciando os cuidados de que foi cercada, sobretudo no que tange à tradição literária brasileira de traduções do grego. Ela é focalizada através de Ramiz Galvão, D. Pedro II, João Ribeiro e, de um modo especial, pelo estudo de Haroldo de Campos sobre “O Prometeu dos Barões”.
J. Guinsburg
Antígone – tradução de Guilherme de Almeida
Antígone:
Ó meu próprio sangue, Ismene, irmã querida,
que outros males Zeus, da herança infanda de Édipo,
há de nos mandar enquanto formos vivas?
Não existe dor, maldição, ignomínia,
ou desonra, que eu não tenha visto ainda
figurar no rol dos teus e dos meus males.
E esse novo edito agora proclamado
pelo chefe contra esta cidade inteira?
Não ouviste nada? ou ignoras que bem pode
a amigos ferir o mal feito a inimigos?
Três Tragédias Gregas (1997) – Guilherme de Almeida e Trajano Vieira
Acesso a traduções recentes