Quem nunca sonhou com as “viagens de Ulisses”? Nada mais enganador, porém, do que tal denominação. O percurso de Ulisses aos confins ocidentais do Mediterrâneo habitado nada mais é que seu longo retorno dos campos de batalha de Troia; através do ardil do cavalo, foi Ulisses quem assegurou a conquista da cidade. Em contraste com o retorno de Agamêmnon, que termina no sangue conjugal em Micenas; diferentemente do retorno de Menelau, que conduz o herói junto da bela Helena ao Egito, o itinerário de Ulisses assume um contorno etnográfico: confronto com seres nos limites do humano, entre o divino e o animal, jovens mulheres sedutoras e capciosas, como Circe e Calipso, monstros canibais e antissociais como os Ciclopes ou os Lestrigões, numa geografia de fábula. Desenha-se assim em contraste, por meio da interrogação, uma imagem da civilização dos homens; uma ficção ao mesmo tempo antropológica e poética da cultura (grega) dos mortais, na grande tradição homérica: alimentação à base de trigo macerado, regras de hospitalidade e convivência, sacrifícios aos deuses, política da assembleia, entre o comércio e a guerra. Os limites dessas práticas, relacionadas à mortalidade humana, são explorados por Ulisses. Em sua ação, diante de seres que se situam além ou aquém do humano, o herói afirma a cada vez os valores de um modo de vida a despeito da existência efêmera a que a mortalidade condena o homem civilizado; os imprevistos podem às vezes ser esquivados pelas artes técnicas e pela inteligência prática de que Ulisses se mostra precisamente o mestre.
Mas o retorno de Ulisses é também o raconto da fidelidade amorosa de Penélope, encarnação de uma inteligência e de uma excelência femininas por vezes ambíguas; é igualmente a incursão do senhor nos campos de Ítaca, em um mundo rústico e pastoral; é ainda a busca de Telêmaco em uma geografia mais histórica, em Pilos, na corte exemplar do sábio Nestor, ou mesmo em Esparta onde Helena entrevê a heroização, nos Campos Elísios, de seu marido reencontrado. E a narração assumida por Ulisses inclui os “discursos enganosos”: relato fictício em que o herói coloca em cena aquilo que poderia ter sido seu retorno ao passar por uma Creta que, ao contrário das terras distantes abordadas em seu périplo de retorno, representa os valores mesmos da civilização.
Mas o retorno de Ulisses é sobretudo a descoberta da sociedade utópica da Feácia. A ilha dedicada ao mar e suas rotas poderia corresponder geograficamente à atual Corfu se, muito antes das ilusões realistas alimentadas pela viagem e pelas fotografias de Victor Bérard, Estrabão já não tivesse afirmado o caráter poético da geografia homérica ou, mais exatamente, odisseica. Seja ela qual for, a sociedade dos heróis de nomes marinhos oferece um poder real de uma harmonia digna da idade do ouro, numa proximidade com os deuses que afasta os feácios dos imprevistos da mortalidade. É lá, na corte do hospitaleiro Alcínoo, que o aedo Demódoco ilustra para nós, numa surpreendente mise en abyme, o que poderia ser a recitação ritmada e musical da própria Odisseia, antes que Ulisses tome para si a tarefa de nos relatar suas aventuras, mas sem a inspiração da Musa, reservada ao poeta, que canta tudo de forma encantadora.
Reler a Odisseia em toda a sua extensão narrativa e geográfica é saborear novamente este prazer; para além dos séculos, a tradução poeticamente oferecida por Trajano Vieira nos convida a isso.
Claude Calame
O coração fraqueja de Odisseu, e os joelhos;
o amargurado diz ao coração magnânimo:
“Horror! Pois Zeus permite-me rever a terra
inesperada, superar o abismo túrbido
e deixar não consigo o oceano gris. A orla
do penhasco, o circum-mugir dos vagalhões,
os rochedos polidos sobrescorregantes,
o mar rentiabissal não oferecem ponto
de que se fuja do perigo. Que um enorme
caudal não me arremesse contra a pedra se eu
me evadir! Tanto esforço malogrado! A nado,
costeio um pouco mais? Quem sabe encontre praia
na qual rebentem ondas ou acesso ao porto?
Mas não me arrisco a que me engula o furacão
de novo, num arrasto lamentoso a tálassos
piscoso, ou que um eterno instigue contra mim
um megamonstro dos que Anfítrite se nutre?
Sei quanto me detesta quem retreme a terra.”
Assim pensava e um escarcéu gigante cospe-o
contra um abrolho abrupto, e a pele escalavrada
ficaria e os ossos triturados não
fora surgir em sua mente Atena: agarra,
de um forte impulso, a rocha com as duas mãos,
onde gemia até que o pélago acalmasse.
Odisseia de Homero (2011) – tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira
Veja: conferência sobre heroísmo na Ilíada