Os tragediógrafos gregos antigos compunham suas obras para plateias que conheciam de antemão, em linhas gerais, os mitos encenados. No entanto, é muito provável que o infanticídio de Medeia tenha sido invenção de Eurípides. A história de uma mãe que assassina a futura esposa de seu marido, o pai desta, rei de Corinto, e, principalmente, os seus próprios filhos como parte de uma estratégia que visa infligir dor ao esposo e vingar as traições sofridas, faz da Medeia de Eurípides uma das mais desconcertantes tragédias. Se na época a peça não foi popular, obtendo o último lugar no concurso das Grandes Dionísias de 431 a.C., a sua fortuna é enorme, e ela serviu de inspiração a inúmeras Medeias posteriores, desde a de Sêneca à de Pasolini e, entre nós, a Joana da Gota d’água (de Chico Buarque e Paulo Pontes, 1975).
O enredo e a personagem principal da Medeia de Eurípides têm suscitado diversas questões: em confronto com a teoria aristotélica e as demais tragédias gregas, será lícito chamar de “heroína trágica” esta Medeia que comete lúcida e voluntariamente um crime assombroso pelo qual não parece ser punida pelos deuses no final, mas, ao contrário, é por eles salva? Em que consiste a sabedoria (sophía) de Medeia, enfaticamente ressaltada pela própria personagem e por seus interlocutores? Esses e outros problemas levantados pela crítica são discutidos por Trajano Vieira no posfácio à tradução.
Das tragédias gregas antigas, perderam-se o contexto cultual, a música, a dança e a encenação como um todo, elementos fundamentais e constitutivos desses dramas. Hoje, lemos a sós e em silêncio, quase como partituras musicais, apenas o que a tradição nos legou dos textos originalmente encenados, ou, ainda, traduções das falas das personagens e dos cantos corais. É por isso que as versões precisam ser eficazes e tanto maior será a importância daquelas que conseguirem recuperar, de alguma forma, algo do que se perdeu. Nesta tradução da Medeia, em decassílabos e versos livres, Trajano Vieira busca recriar a linguagem poética do texto original: os efeitos sonoros e prosódicos, a especificidade lexical e sintática, e as figuras retóricas. Temos a oportunidade de acompanhar esse trabalho do tradutor e as soluções por ele alcançadas em notas que elucidam o seu processo de transcriação.
Se a tragédia morreu, conforme George Steiner, em contrapartida, o crescente número de traduções de tragédias gregas para o português nos últimos vinte anos é forte indício de que os estudos clássicos e o público leitor interessado em tragédia antiga não apenas sobrevivem como prosperam entre nós. Trajano Vieira, professor de língua e literatura grega da Unicamp, tem-se dedicado a essa difícil tarefa, sendo um dos maiores responsáveis pelo expressivo aumento de versões de tragédias gregas no país. Contam-se, entre as suas obras, traduções de Prometeu prisioneiro (1997) e Agamêmnon (2007), de Ésquilo; Ájax (1997), Édipo rei (2001), Édipo em Colono (2005), Filoctetes (2009) e Electra (2009), de Sófocles; e As bacantes (2003) e Electra (2009), de Eurípides.
Paula da Cunha Corrêa
Medeia:
…
Eis minha mão, que tanto acariciavas!
Joelhos meus, quantas vezes o farsante
vos afagou, mentindo-me esperanças!
Que tipo de diálogo teríamos,
qual foras companheiro a mim solícito?
A vilania avulta na conversa.
Que rumo hei de tomar? O da morada
paterna que traí, tal qual a pátria?
E as míseras pelíades me abririam
a porta, a mim, algoz cruel do pai?
Não ignoro que em casa me detesta
quem mais amo. Só tem por mim rancor
quem, para te agradar, prejudiquei.
Ganhei o quê? A boa aventurança,
na opinião corrente entre as helênicas.
Infeliz, que marido fiel, notável,
a mim foi dado ter, se me exilarem
só, com meus filhos sós, vazia de amigos…
Medeia de Eurípides (2010) – tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira
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