Como não recordar o soneto famoso de Rainer Maria Rilke, “Torso Arcaico de Apolo”, tão admiravelmente traduzido por Manuel Bandeira, ao ler o pouco que chegou até nós da poesia lírica grega? Além do número reduzido de textos mantidos na tradição, deve-se considerar que boa parte deles aparece em estado fragmentário. Entretanto, conforme registra Rilke em relação ao corpo lacunar de uma escultura antiga, a lírica preserva-se integralmente nessas obras escassas e estilhaçadas. Trata-se de uma produção que aborda com rara sutileza temas como amor, perda, amizade, vigor, envelhecimento. O requinte de suas formulações atinge o pico da produção literária grega, mas, cabe ressaltar, esse requinte não é de difícil acesso, talvez por abordar experiências que perduram como arquétipos e realidades da existência humana ao longo do tempo.
Lírica Grega, Hoje traz a público alguns dos poemas mais significativos desse período. Procura oferecer ao leitor algo da expressão original, através de um processo de reelaboração de sua linguagem. Tal projeto nada tem a ver, portanto, com as versões prosaicas cometidas em ambientes acadêmicos, que ferem impiedosamente o coração desse repertório: a expressividade de suas formulações. Assim, será desnecessário acrescentar que a presente coletânea não tem a ambição de fornecer material para minudentes comentários filológicos, mas de oferecer ao leitor algo do sabor da expressão do original.
Não é propriamente agradável registrar a quase inexistência de traduções poéticas da lírica grega em português. Excetuando uma ou outra experiência nesse campo, como as extraordinárias traduções que Haroldo de Campos realizou de fragmentos de Safo, o que prevalece entre nós são textos de sensibilidades antilíricas, refratárias à musicalidade dos originais, avessas a assumirem riscos sintáticos que nos coloquem em sintonia com algo desse imaginário que indaga com frequência as situações do sujeito diante do caráter enigmático da transitoriedade que experimenta.
O universo multifacetado da lírica grega parece ter, no seu horizonte, como elemento que lhe confere certa unidade, a instabilidade do tempo humano que particulariza o que se experimenta de maneira plena, mas fugaz. É um pouco dessa fragilidade perene da arte e da vida que se procura oferecer neste volume.
Lírica Grega, Hoje – entrevista
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As vozes de Arquíloco, Alceu, Safo e Anacreonte, entre outras que aqui figuram, se fazem ouvir na sua inflexão e musicalidade neste Lírica Grega, Hoje, pois Trajano Vieira as recupera na transcriação em fala portuguesa de seus versos. Trata-se, portanto, de um retorno às fontes da cultura grega e de sua tradição, nos termos de nossa atualidade, pelo en-canto que, não obstante a perda da oralidade coloquial primeva, se filtra nas tentativas mais arrojadas de lhes devolver a vitalidade de seus primórdios – já que os signos se tornaram baixo-sonantes na transmissão histórica, ao serem enformados na tipologia da escritura. E é justamente em detrimento da parcialidade desse fato que a voz brasileira imprime sua originalidade com relação a tudo que se tentou em poesia em nossa língua, no contexto do que os avatares da modernidade experimentaram em suas expedições poéticas. Esse é o tesouro que o nosso poeta, na sua busca da arca perdida, encontra e oferta, com todo o seu ouro, para a nossa fruição.
J. Guinsburg e Luiz H. Soares
Lírica Grega, Hoje (2017) – tradução, introdução e notas de Trajano Vieira
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