Esta coletânea com 60 poemas de Konstantinos Kaváfis (1863-1933) busca oferecer ao leitor de língua portuguesa algo da sutileza coloquial do autor grego. Normalmente, o poeta é vertido em nossa língua de maneira prosaica, e tanto os efeitos de sua ironia quanto a caracterização requintada dos personagens que figuram em seus textos ficam obscurecidos pela dicção desatenta ao estilo original. Preserva-se, assim, muito pouco de seu espírito alexandrino. Desconsidera-se o fato de o autor desdenhar dos falsos artistas da palavra, caracterizados como verborrágicos e prolixos. Particularmente a seu respeito, caberia a indagação mallarmaica: o que resta da poesia, abolida sua linguagem?
Há algo de Borges em Kaváfis, sobretudo na maneira ambígua de ele conferir verossimilhança histórica aos personagens. A impossibilidade de se impor ao curso da história produz tipos excêntricos, às vezes fantasmagóricos, às vezes cínicos, insubmissos, à maneira de Luchino Visconti, aos desejos impetuosos. Nesse sentido, ler Kaváfis é uma provocação permanente, pois ele fala do que permaneceu marginal à memória. E a ironia nasce justamente da consciência que os personagens têm de sua posição deslocada, do não-lugar que ocupam. Inseridos num contexto multicultural de enorme complexidade, a questão da identidade ou de sua busca surge em primeiro plano. O sensualismo que eles manifestam nesse panorama que resulta enigmático pelo cruzamento de tradições é um aspecto fundamental da produção kavafiana, que se procurou recuperar na tradução.
Mar matutino
Deter-me aqui. Vislumbre um pouco a natura.
O rútilo blau do mar matutino,
a abóboda sem nódoa, a orla ocre. A tudo
embeleza a luz efusa.
Deter-me aqui. Me iluda um tal panorama
(verdade: estático, o vi fugaz);
um tal, e não, também aqui, as fantasmagorias,
as rememorações, a luxúria das miragens.
Konstantinos Kávafis – 60 poemas (2007) – tradução e introdução de Trajano Vieira
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