O que constitui o motivo central da Ilíada e que comanda, a um só tempo, a sua unidade e a sua progressão, não é a ira de Aquiles, mas o duelo deste com Heitor, o confronto trágico entre o herói da vingança e o herói da resistência. A despeito dos deuses e da necessidade, resta ainda o bastante de uma liberdade incipiente, que faz com que o espetáculo não pareça decidido de antemão nem aos nossos olhos, nem aos olhos de Zeus, o contemplador divino. A depender do ritmo das batalhas, o ímpeto dos invasores e a coragem dos sitiados equilibram-se de modo a recriar constantemente, em cada adversário, a incerteza sobre o futuro.
Quando Heitor ousa enfrentar Aquiles sem perder a esperança de vencê-lo, já usou o melhor das suas forças vencendo-se a si mesmo. A missão de Aquiles é renovar, em meio às ruínas, as fontes e os recursos da energia vital; a de Heitor é salvar, por meio da entrega de si mesmo, o fardo sagrado cuja preservação assegurará uma profunda continuidade ao devir. Mas é apenas no momento da batalha decisiva que o amadurecimento da coragem, em Heitor, até a sua restauração suprema, e a ascensão da ira, em Aquiles, até o êxtase mortal, ganham os seus verdadeiros significados. Sob essa luz, os destinos de Aquiles e de Heitor revelam-se solidários na luta, na morte e na imortalidade. Onde a história mostra apenas muralhas e fronteiras, a poesia descobre, para além dos conflitos, a misteriosa predestinação que torna dignos um do outro os adversários convocados para um encontro inexorável. Assim, Homero pede reparação apenas da própria poesia, que, da beleza reconquistada, arrebata o segredo da justiça, vetado à história. É ela que, por si só, restitui ao mundo turvado o orgulho ofendido pela vanglória dos vencedores, o silêncio dos vencidos. Que outros se queixem de Zeus, que outros se admirem por ele consentir em “pôr no mesmo plano os bons e os maus, aqueles cujas almas buscam a justiça e aqueles que, comprometidos com a violência, servem à iniquidade”. Já o próprio Homero, este não se admira, não se indigna, não espera resposta alguma. Onde estão os bons, na Ilíada? E onde estão os maus? Tudo o que vemos são homens a sofrer — guerreiros em luta, que ou triunfarão, ou sucumbirão. As reivindicações por justiça são simplesmente um murmúrio de choros e queixas sobre os joelhos de mármore da necessidade. A paixão pela justiça se expressa apenas nesse luto pela justiça, e com o aval do silêncio. Condenar ou absolver a força é o mesmo que condenar ou absolver a própria vida. E a vida, na Ilíada (como na Bíblia, como em Guerra e paz), é essencialmente aquilo que não pode ser estimado, mensurado, condenado ou justificado pelos viventes. E ela se julga a si mesma apenas por meio da consciência que tem de sua própria indizibilidade. Essa aceitação desprovida de enrijecimento interior, consubstancial com a existência, está demasiado distante dos cortejos dos estoicos.
A filosofia da Ilíada, filha da amargura, abole o ressentimento. Ela precede o divórcio entre natureza e existência. Aqui, o Todo não é uma montagem de cacos quebrados e depois colados da melhor forma possível pela razão, mas sim o princípio ativo da penetração recíproca de todos os elementos que a compõem. O desenvolvimento do inevitável é encenado, simultaneamente, no Cosmos e no coração do homem. À eterna cegueira da história opõe-se a lucidez criativa do poeta, que designa, para as gerações futuras, heróis mais divinos que os deuses, mais homens que os humanos.
Ao contrário do que afirma Nietzsche, Homero não é o poeta das apoteoses. Aquilo que ele exalta e santifica não é o triunfo da força vitoriosa, mas a energia humana em meio ao infortúnio, a beleza do guerreiro morto, a glória do herói sacrificado, o canto do poeta nos tempos que virão — tudo aquilo que, abatido pela fatalidade, ainda a desafia e a supera.
Rachel Bespaloff
(extraído de De l’Iliade, Nova York, Brentano’s, 1943)
Leia abaixo o trecho inicial da Ilíada.
Ilíada de Homero (2020) – tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira
Veja: conferência sobre heroísmo na Ilíada