Com essa trans-versão do Hipólito de Eurípides, ou transcriação, como na verdade é, Trajano Vieira, na presente edição da 34 Letras, dá prosseguimento ao seu projeto tradutório. É um conjunto já consagrado que resulta não só de uma vida acadêmica dedicada aos estudos da cultura, da literatura e do teatro gregos, como de uma proposta poética inusitada, renovadora, senão revolucionária, na forma de abordar suas transposições. Em face dos critérios tradicionais da ortodoxia gramatical sintática que vem acompanhando, mesmo em português, a trajetória e o processamento da correspondência lexical e semântica, esta abordagem quer levar aos olhos e aos sentidos de nosso leitor-espectador, ao vivo, nos dias de hoje, a letra e a fala, o pensamento e os afetos inscritos nos dramas e nas comédias dos deuses e dos homens da Hélade mítica e histórica que, no entanto, na sua corporeidade, são, em essência, os mesmos de hoje e de sempre.
Não se trata, apenas, desta ou daquela dentre as interpretações que se acumulam nas páginas da historiografia crítica sobre os restos dessa messe dramática legada por Ésquilo, Sófocles e Eurípides. Digo, dramática, com intuito especial, porque efetivamente, neste último tragediógrafo já se abre uma via para o que veio a ser, mais tarde, sobretudo no século XIX, chamado de drama, na acepção romântica e realista. Pois aqui, no seu ancestral helênico, também temos – nas personagens figuradas, no entrelaçamento de suas ações e vivências, nos efeitos por elas desencadeados, na vida e na morte e em tudo que os entrama e move dentro e fora do Olimpo – as mesmas que “pulsionam” as nossas corriqueiras existências: amor, paixão, ciúme, ódio, vingança na desmedida de seus embates e nos desatinos e transgressões que provocam o seu fatum pelas leis dos homens e da cidade. É o que tece os procedimentos das divinas Ártemis e Afrodite e dos humanos Fedra e Teseu na sua relação com Hipólito: a cega entrega de seu julgamento, de sua conduta e de seu livre-arbítrio às manipulações e fúrias das insondáveis causas das ações, à linguagem dos sentidos e dos desígnios em jogo.
E é neste ponto que Trajano Vieira nos oferece as suas soluções criativas, poéticas e cênicas. O texto de sua lavra, no seu nível de linguagem, nas suas montagens greco-portuguesas, sem concessões a um coloquialismo popularesco, mas valendo-se de seus recursos lexicais e frasísticos, nos lançam à interlocução concreta e imaginativa que a língua transcriada nos induz pelas páginas de Hipólito, convertendo-nos em leitores-espectadores do estro euripidiano.
J. Guinsburg
Nutriz:
Que palavras são essas de loucura?
Primeiro era o monte em que ansiavas
caçar. Agora é na areia
vazia de mar que sonhas com os potros.
Só alguém com muita experiência em mântica
identificaria o deus
que agita a brida e aturde o teu espírito.
Fedra:
Tristeza! O que fiz?
Por onde sequestrei-me do bom senso?
Louca, o revés de um deus me assola.
Ai! Amargura!
Recobre-me a cabeça, ama,
pois me constrange o que falei.
Cobre! Decaem as lágrimas dos olhos
e no desdouro fixo a vista.
Custa aprumar a lucidez
e a insensatez é um mal. Melhor
morrer sem conhecer.
Hipólito de Eurípides (2015) – tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira
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