Boa parte da poesia grega antiga tem a mitologia como sua principal fonte de inspiração. Não obstante essa matriz comum, que remonta a tradições que foram transmitidas de geração a geração dentro da civilização helênica, cada autor fazia escolhas pessoais na hora de eleger os mitos que seriam abordados em suas criações, assim como o enfoque que dariam às suas narrativas.
Entre as tragédias gregas que sobreviveram até nossos dias, somente duas têm o mito de Héracles (ou Hércules, na nomenclatura latina) como tema central: As Traquínias, de Sófocles (496-406 a.C.), e Héracles, de Eurípides (c. 480-406 a.C.). A publicação conjunta destas obras, em dois volumes bilíngues — ambas vertidas poeticamente para o português por Trajano Vieira —, é uma excelente oportunidade para se comparar as diferenças de estilo e concepção filosófica nesses dois grandes autores.
As duas peças — que têm sido objeto de uma análise renovada por parte da crítica mais recente — possuem composição assemelhada, em duas partes, e um ponto de partida em comum: o iminente retorno do herói grego ao lar após a conclusão dos doze trabalhos. A partir daí, no entanto, a versão de Eurípides difere radicalmente da obra de Sófocles.
Em seu Héracles, Eurípides subverte o enredo mitológico, pois antepõe os trabalhos ao assassinato de sua família. Quando a história se inicia, o herói encontra-se no Hades para realizar seu último trabalho (capturar Cérbero, o cão de três cabeças que guardava a entrada do submundo) e sua família está ameaçada de morte pelo tirano Lico, que na ausência de Héracles assassinara Creon, rei de Tebas e pai de Mégara (esposa de Héracles), e usurpara o trono, fiando-se na probabilidade quase nula de o herói escapar dos ínferos com vida. Para desgraça de Lico, porém, o herói retorna e imediatamente leva a cabo a justa vingança contra aquele que almejava eliminar sua progênie. Neste ponto, o enredo tem uma inflexão inesperada, iniciando-se a segunda parte da tragédia com a chegada das enviadas de Hera — a esposa de Zeus que perseguia Héracles desde a infância, pois o herói era fruto do amor de seu marido com Alcmena, uma mortal.
Muita polêmica causou, ao longo dos tempos, a estrutura que Eurípides deu a esta peça, claramente cindida em dois atos contrapostos, algo que se chocava diretamente com o preceito de unidade da ação dramática que seria preconizado por Aristóteles em sua Poética. Modernamente, porém, tal recurso tem sido visto como um traço inovador e, mais que isso, como um elemento fundamental na composição da obra.
De fato, a oposição entre a primeira parte, mais convencional, e a segunda, que se inicia com um diálogo entre as divindades Íris e Loucura — com o apelo sensato desta última contra as ordens de Hera —, reforça o tratamento que é dispensado na peça aos deuses, criticados pelos personagens por sua falibilidade e apresentados pelo autor como nada mais que um recurso da criação poética. É a dimensão humana, portanto, que será valorizada ao final deste surpreendente Héracles de Eurípides.
Héracles:
Fará sentido preservar a vida
do matador dos filhos queridíssimos?
Arrojo-me do precipício oblíquo,
encravo o gládio firme contra o fígado,
justiceiro do sangue dos meninos?
Por que não incinero a própria carne,
poupando-me da infâmia que me aguarda?
Teseu, parente e amigo, não é ele
que vem me desviar de anseios fúnebres?
Logo me avista e o horror do infanticídio
alcança o olhar de um hóspede benquisto.
O que farei? Onde encontrar refúgio
ao que me aflige? Voo? Sumo no ínfero?
Circum-envolvo em treva a testa: a ruína
do que perfiz constrange-me, e não quero
infectar o inocente com o sangue
turvo do iníquo matador de inócuos.
Héracles de Eurípides (2014) – tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira
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