Nietzsche via em Eurípides a expressão maior do racionalismo socrático. Sob determinado ângulo, não deixava de estar certo, como se verifica no fino desenvolvimento argumentativo que torna a obra deste dramaturgo um marco duradouro da dialética dramática, no discurso clássico do helenismo e de seu debate de ideias. Mas, pode-se contrargumentar que, dentre os expoentes da arte da tragédia na Grécia, talvez nenhum tenha chegado mais fundo nas razões da desrazão do que o autor de As Bacantes. Quaisquer que tenham sido os motivos que o levaram a isso e as concepções a que quisesse dar voz, o fato é que em nenhum outro, como neste drama, Dioniso entra na sua máscara de dioniso, fazendo da linguagem e da cena a concretização poética das forças da irracionalidade e da sexualidade, de Eros e Tânatos, que coabitam e co-agem na criatura humana, numa relação íntima com os poderes de seu intelecto e da representação crítica do mundo e dos homens. Assim, o palco se transforma no real lugar do não-lugar, em que, seja na figura de Penteu, das mênades ou do próprio deus, o desencadeamento da fúria e da cegueira do inconsciente à solta substantiva-se no verbo apolíneo-dionisíaco do drama-poesia a aflorar na complexidade estética de uma incomparável encarnação artística. Recuperar este complexo de vozes e falas que na sua interlocução teatral transbordam os sentidos dos signos e, no entanto, permanecem neles contidos, é precisamente o intento desta tradução única de As Bacantes de Eurípides. Nela, Trajano Vieira, com a audácia da vanguarda e uma técnica poética solidamente ancorada num saber teórico e filológico, proporciona ao leitor brasileiro um clássico-moderno da transposição para a língua portuguesa de textos do extraordinário acervo legado à humanidade pela civilização grega.
J. Guinsburg
Dioniso:
Deus, filho de Zeus, chego à Tebas ctônia,
Dioniso. Deu-me à luz Semele cádmia.
O raio – Zeus porta-fogo – fez-me o parto.
Deus em homem transfigurado, achego-me
ao rio Ismeno, ao minadouro dírceo.
Avisto o memorial de minha mãe
relampejada junto ao paço. Escombros
de sua morada esfumam com o fogo,
ainda flâmeo, de Zeus, ultraje eterno
de Hera contra Semele. Louvo Cadmo:
sagrou à filha o espaço não-pisado,
que circum-ocultei com verdes vinhas
em cachos. Deixo Lídia e Frígia pluri-
-áureas; os plainos da Pérsia calcinados;
Báctria emurada, a Média, terra gélida;
Arábia venturosa; pleniaberta
ao mar salino, a Ásia, onde, em tantas urbes
de torres multilindas, grego e bárbaro
compunham gigantesco aglomerado.
As Bacantes (2003) – tradução e introdução de Trajano Vieira
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