Como muitas das grandes obras de arte, As Troianas é algo mais do que arte. É também uma profecia, um testemunho. E o profeta, compelido a entregar sua mensagem, caminha fora das vias usuais do artista.
Algum tempo antes de As Troianas ter sido produzida, Atenas, agora inteiramente nas mãos do Partido da Guerra, se engajou numa empresa que, apesar de defensável do ponto de vista militar, foi amargamente ressentida pela minoria mais humanitária, e eleita por Tucídides como o maior e mais crucial crime da guerra. Atenas conseguira instigar a neutra ilha de Melos, de civilização dória, a pegar em armas contra si, e após um longo cerco conquistou a pacata e ancestral cidade, massacrando os homens e vendendo as mulheres e crianças como escravos. Melos caiu no outono de 416 a.C. As Troianas foi produzida na primavera seguinte. E enquanto os deuses do prólogo profetizavam a destruição dos saqueadores de Troia no mar, a frota dos saqueadores de Melos, inebriada com a conquista e marcada por uma pequena mas indelével mancha de sacrilégio, já estava se preparando para zarpar na sua fatal empresa contra a Sicília.
Não há hipótese, é certo, de termos em As Troianas um caso de alusão política. Longe disso. Eurípides não está se referindo a Melos quando fala de Troia, nem remete à frota de Alcibíades quando menciona a de Agamêmnon. Mas escreve sob a influência de um ano que, para ele, como para Tucídides, fora repleto de uma compaixão indignada e um pressentimento terrível. Esta tragédia é talvez, na literatura europeia, a primeira grande expressão do espírito de compaixão pela humanidade alçado a princípio mobilizador; um princípio que foi o mais precioso e possivelmente o mais destrutivo elemento de inumeráveis rebeliões, revoluções, martírios, e de pelo menos duas grandes religiões.
A piedade é uma paixão rebelde. Ela se ergue contra os fortes, contra as forças organizadas da sociedade, contra as convenções da ordem e os deuses estabelecidos. É o Reino dos Céus dentro de nós lutando contra os poderes brutais do mundo; e pode vir a ter aquelas qualidades da desrazão, do desdém pela contabilidade dos custos e pelo equilíbrio dos sacrifícios, da imprudência, e mesmo, como último recurso, da crueldade, que tantas vezes marcam o caminho das coisas celestiais e os feitos das crianças de luz. Ela não traz a paz, mas a espada.
Assim foi com Eurípides. De fato, As Troianas não tem quase nenhuma violência e, singularmente, poucos pensamentos sobre vingança. Trata-se apenas do lamento de uma das grandes injustiças do mundo transformado em música, por assim dizer, e feito belo pelo “mais trágico dos poetas”. Mas seu autor viveria para sempre numa profunda atmosfera de conflito e mesmo de ódio, até o dia em que, “porque quase todos os atenienses se regojizavam com seu sofrimento”, ele tomou o caminho dos remotos vales da Macedônia para escrever As Bacantes e morrer.
Gilbert Murray
(Excerto da nota introdutória a The Trojan Women of Euripides, 1905)
Abertura de As Troianas de Eurípides
Posêidon:
Deixei o báratro salino do oceano
Egeu, onde as Nereidas gravam com os pés
um belo círculo. Apolo erigiu
comigo o baluarte pétreo a fio de esquadro
em torno desta terra teucra. O sentimento
de simpatia nunca me abandona a mente
pela cidade de meus frígios, fumegando
agora. Morre, devastada pela lança
argiva. O fócida parnásio Epeu, após
estruturar as partes do cavalo grávido
de armas, discípulo de Palas, introduz
a estátua morticida dentro das muralhas.
Os homens no futuro a denominarão
cavalo armado, pelas armas que ocultava.
Ninguém no bosque, os templos vertem sangue, Príamo
tombou sem vida diante dos degraus do altar
de Zeus Erceu. Espólios frígios, profusão
de ouro, são levados aos navios aqueus.
Na expectativa de que o vento sopre à popa,
ao cabo de um decênio, alegres por rever
mulher e filho, os gregos guerrearam contra
a cidadela. Hera argiva derrotou-me,
Palas com ela, dupla algoz da gente frígia.
Deixei a renomada Ílion com altares
a mim devotos. Quando a solidão da agrura
retém uma cidade, a reverência aos deuses
adoece, falta alguém que lhes devote honras.
E o Escamandro estronda o pranto sucessivo
de prisioneiras que ao acaso seguem déspotas.
Algumas vão com árcades, com os tessálios,
outras com teseídas, líderes de Atenas.
Sob as tendas encontram-se as troianas não
sorteadas, posse de quem encabeça as tropas,
entre as quais a espartana Helena tindarida,
não sem razão retida como prisioneira.
Se alguém quiser mirar uma mulher tristíssima,
eis Hécuba jazente diante dos portais.
Sobram razões para que chore aos borbotões,
pois junto ao memorial da tumba do Aquileu,
morreu-lhe a filha altiva, a triste Polixena,
e Príamo conheceu a mesma sina, e os filhos,
e o ímpio Agamêmnon, desdenhando o deus,
impôs o casamento sigiloso à casta
Cassandra, a quem Apolo desnorteia. Pólis
outrora afortunada, adeus! Adeus, ameias
polidas! Sobre os alicerces fulgirias,
não fora a ação de Palas, filha do Cronida.
As Troianas de Eurípides (2021) – tradução, posfácio e notas de Trajano Vieira
Acesso a traduções inéditas