“É curioso que uma virgem, que lamenta morrer sem marido e sem filhos, revele total indiferença pelo noivo Hemon. Essa indiferença surpreende ainda mais se lembrarmos que Antígone, desde o início da tragédia, mostra-se consciente da punição que decorrerá do enterro de Polinices. Ou seja, Antígone sabe que vai morrer e concentra toda sua energia no ato que acelera seu fim. […] É a impossibilidade de deslocar seu desejo para fora do âmbito de uma família marcada pelo incesto o que a leva a ignorar o próprio noivo” – é a reflexão que Trajano Vieira faz sobre um dos textos mais poderosos da chamada Tragédia Grega. Por original que seja, ele não esgota nem exclui interpretações como a de Steiner, Vernant e Reinhardt, cujas percepções, assim como de uma tradição várias vezes milenar da exegese tragediográfica, apenas dão a medida da amplitude intelectual, existencial e humana do texto criado por Sófocles. A qualidade poética e os recursos de linguagem, utilizados com tanta proficiência pelo tradutor em nossa língua, só acentuam este poder de falar do homem e de seus modos de ser com uma voz que, do fundo da história, projeta para o futuro infinito os sentidos da existência humana.
J. Guinsburg
Antígone:
Homossangüínea irmã, querida Ismene,
será que Zeus nos poupa, enquanto formos
vivas, de algum dos males que abateram
Édipo? O rol do horror está completo:
dor, despudor e desonor, que dis-
sabor nos falta? O general promulga
um decreto à cidade toda. Sabes
algo de seu teor ou desconheces
os males que inimigos têm causado
contra quem nós amamos. Nada ouviste?
Ismene:
Desde que nos privamos ambas de ambos
os irmãos num só dia, pela ação
de mãos recíprocas, nada escutei
de alegre ou triste. Após argivos irem
noite adentro, nenhuma novidade
aliviou meu sofrimento antigo
ou agravou a agrura que carpia.
Antígone:
Era o que eu pressentia e foi por isso
que preferi falar contigo fora.
Antígone de Sófocles – tradução e introdução de Trajano Vieira
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