A figura de Ájax, um dos heróis da Guerra de Troia, tem fascinado o público desde a mais remota Antiguidade. Na Ilíada ele já era retratado como um personagem arcaico, um guerreiro que portava um enorme escudo e atirava pedras nos inimigos.
Nesta tragédia de Sófocles (496-406 a.C.), um dos pontos altos do teatro mundial, o foco volta-se para a sua derrocada. Após o julgamento que destinou as armas de Aquiles a Odisseu, e não a ele, que foi o responsável por deter as forças troianas na ausência do maior herói grego, Ájax se revolta e decide matar Agamêmnon, Menelau e o próprio Odisseu. Nesse momento intervém a deusa Atena, que faz com que Ájax massacre os rebanhos de seu exército acreditando se tratar dos líderes gregos.
Com esse ponto de partida, Sófocles vai discutir uma das questões centrais de sua época: como as tradições das antigas aristocracias poderiam ser medidas em face dos novos valores da democracia ateniense? Ou mais amplamente: como as convicções mais profundas de uma sociedade podem mudar com a passagem do tempo?
O presente volume, bilíngue, inclui o clássico ensaio de Bernard Knox sobre a peça, em que o helenista inglês discute esse e outros temas, e a brilhante tradução de Trajano Vieira, na qual toda a riqueza de registros do texto sofocliano foi recriada com talento e esmero em nossa língua.
“Se isso [os versos 646-92 de Ájax] fosse tudo o que tivesse sobrado de Sófocles, ainda assim teríamos de reconhecê-lo como um dos maiores poetas do mundo.”
Bernard Knox
(versos 646-92)
ÁJAX
O tempo, em sua sucessão de números,
revela e encobre o que trazia à luz.
inexiste o imprevisto. Não escapa
a jura mais solene, a mente intrépida.
Se eu me mantinha duro em meus propósitos,
como ferro na têmpera, amoleço
a língua quando a ouço: dói deixar
o filho órfão e ela entre os vis.
agora irei banhar-me junto ao campo
litorâneo. quem sabe eu me depure
desta escória e me poupe a ira divina.
Tão logo encontre um território virgem,
esconderei a espada, odiosa lâmina,
numa vala secreta, fundamente
escavada, à mercê da noite e do Hades.
Desde que a recebi das mãos de Heitor,
presente do meu arqui-inimigo,
não me favoreceu um bem argivo.
Com seu provérbio o homem diz verdade:
“o dom de um desafeto só desdoura”.
Por isso, doravante eu sigo os deuses,
e os atridas já contam com respeito.
São os chefes; é lei obedecê-los.
Nem mesmo o que resiste foge à regra:
cede. O inverno, com seus passos níveos,
dá lugar ao verão de belas frutas.
Ao dia alviequino o disco escuro
da noite põe-se em fuga, e vem a luz.
O furacão furioso dorme onde
a onda ulula. O sonho onipotente
retém e solta. Não mantém consigo
a presa. a lucidez é refutável?
agora eu sei que a inimizade pelo
inimigo não deve ser total,
podendo ser benquisto um belo dia.
Coloco-me à disposição do amigo,
sabendo ser fugaz. a maioria
não confia no porto da amizade.
Tudo irá bem, no que concerne a isso.
Tecmessa, entra na tenda e pede aos deuses
que aceitem o que dita meu desejo.
amigos, demonstrai presteza idêntica;
cuide de mim, tão logo volte, Teucro.
a vós deve estender o seu apuro.
E eu parto para onde devo ir.
Dai termo a tudo. Logo faz-se claro:
estou a salvo em minha desventura.
Ájax de Sófocles – tradução e introdução de Trajano Vieira
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